Patinando nos meandros dos textos
Em cada idade, o que retiramos dos livros que lemos?
Em cada idade, retiramos dos livros aquilo que nos é permitido, de acordo com a nossa capacidade de interpretação e as nossas experiências de vida. Por isso faz todo o sentido reler, em diferentes fases da vida, o mesmo livro. E a perceção que temos dele pode ser tão diferente!
Quando eu tinha dezassete anos, a única coisa que apreciei nas Viagens na Minha Terra foi a novela da menina dos rouxinóis. Mais tarde – talvez com vinte e sete – adorei o relato da viagem real, com as suas observações tão atuais sobre o país e a mentalidade das suas gentes.
Recordando as minhas precoces experiências de leitura, lembro episódios engraçadíssimos, quase caricatos. Porque, entre os dez e os quinze anos, eu li de tudo um pouco, e nem sempre a minha maturidade (ou a falta dela) me permitia compreender aquilo que lia.
Ora vejamos.
Palavras que fazem tropeçar
Uma família inglesa, de Júlio Dinis.
Manuel Quintino e Cecília estão na varanda da casa e observam, na foz do rio Douro, um vapor. Será um vapor inglês? – interrogam-se. Manuel Quintino vai buscar os binóculos. Mas que cena intrigante para uma garota! Vapor é uma espécie de nuvem de condensação. Toda a gente sabe que Londres é uma cidade chuvosa, com muita neblina. Este vapor misterioso que pairava na foz do Douro seria um nevoeiro como o que se faz sentir em Inglaterra? Não havia ninguém para explicar à garota de dez ou onze anos que um vapor é, simplesmente, um barco movido a vapor…
Ainda Júlio Dinis, Os Fidalgos da Casa Mourisca.
O fidalgo, o ancião, “estala de paixão”. Mas a paixão não é o amor? Que paixão é essa do velho, que assim o destrói?
As heroínas dos romances serão realmente belas?
Carlota Ângela, de Camilo Castelo Branco. (Visualizo-me num passado distante. Estou a ler, na varanda da casa dos meus pais, sentada no canto mais recatado, de forma a não ser vista da rua.)
O narrador-autor apresenta várias alternativas para o início da novela. Depois, decide-se pela descrição de Carlota. O quê?!… Uma rapariga bonita, aquela? Como poderia ser bonita, com as sobrancelhas unidas no meio, sobre o nariz, e já não sei que outros traços fisionómicos? (….Naquela época, eu nem sequer conhecia Frida Khalo…)
Joaninha, de Viagens na Minha Terra, tem “nariz levemente aquilino”. O que eu passei, há muitos anos, numa turma de Português A de 11º ano, para tentar fazer ver aos jovens que Joaninha era linda! Como poderia ser linda, com um nariz que era como um bico de águia?!
Da complexidade da leitura – em jeito de conclusão
Pois: ler e interpretar são atividades complexas.
E eu não sei o que é mais complexo: se os meandros dos textos, se os meandros dos nossos mecanismos mentais…